11 de jul. de 2014

Bandeja de Prata



Bebeu a 3° dose de Conhaque de Gengibre, pois só possuía dinheiro que comprava tal bebida. Escondeu a careta na manga da camisa de linho branco enquanto sentia a garganta queimar e o fígado se desintegrar. Engoliu a lágrima que ansiava por liberdade, prendendo-a agora em um lugar mais profundo de sua alma. Bateu o copo no balcão e pediu a 4° dose. O garçom encabulado com tal resistência a porcarias sentiu pena do homem de cabelos desgrenhados e olhos inchados, julgou ser mal de amor.
Naquele botequim, tudo seguia independente do que aquele macho sofredor sentia. Não fazia diferença ao velho que se enroscava em sua amante 20 anos mais nova e uma fortuna mais pobre; não fazia diferença à loura de corpo esbelto que buscava seu cliente dessa noite; não fazia diferença à um homem estranho e solitário que havia muito estava imóvel no canto; não fazia diferença para ninguém.
À essa altura, o apreciador de bebidas ruins, já não se aguentava de pé. E com a cabeça deitada sobre o balcão engordurado, e possivelmente, infectado com a maior variedade de doenças possíveis; ele começou a puxar assunto com o garçom.
- Ei! Rapaz, chegue aqui. –ele falou tentando não enrolar tanto a língua.
O garoto com pouco mais de 18 anos, que começara a trabalhar ali havia algumas semanas apenas, viu que o lugar já começava a desertar-se. Se dirigiu ao bêbado:
-Que te aconteceste homem? Por quê dessa sangria desatada? Não tens casa ou mulher a cuidar? –indagava o menino.
-Não menciones casa ou mulher, não quero lembrar-me que possuo tais coisas. –dizia ele com a voz embargada, quando pela bebida, quando não pela emoção.
-Ora homem, sua mulher deve estar a preocupar-se contigo. Teus filhos devem estar a chamar-te.
-A mulher que eu tinha, não quero mais. Se houvesse como devolvê-la, eu o faria. Se a quiseres pode buscar. –ele disse erguendo a mão com um molho de chaves retirado do bolso.- talvez ela lhe tenha maior serventia que a mim. Já meus filhos, não existem. Nunca consegui ser pai.
-Não quero sua mulher –o jovem garçom segurava o riso- baseado em tua aparência, ela não deve ser lá muito bonita. E quanto aos filhos, tu tens é a sorte de não tê-los. Veja, se os tivesse não estaria aqui a beber, estaria a trabalhar para dar-lhes de comer.
O homem balbuciava palavras incompreensíveis, frases que não se conectavam, orações que se perdiam em meio ao seu pranto.
-Beba mais está. –disse o garçom trazendo outra dose de Conhaque de Gengibre ao bêbado.
-Não tenho mais um vintém. –lamentava o homem.
-Deixe essa por minha conta. –o rapaz fazia-se de gentil para conhecer a história do homem. Estava acostumado a ouvir as maiores barbaridades dos outros bêbados que ali se sentavam. Não se cansava nunca de servir-lhes de ombro amigo, gostava de saber das desgraças dos outros para depois escrever.
O menino, que estava a tornar-se homem vagarosamente, amava escrever. Descrevia olhos pequenos como os seus, ou grandes como os de sua mãe. Contava amores como o de Romeu e Julieta, mas, gostava mesmo era das loucuras de Catherine e Heathcliff. Bebia do vinho que Jesus tomara na última ceia, mas, em grande maioria apreciava mesmo era um bom e velho uísque como Bukowski. Queria ser homem de fibra como o pai fora um dia.
-Conta-me o que te aflige homem. Quem sabe eu não te aponto o norte? Não perdes nada por comigo falar. –ele buscava convencer o ser alcoolizado que lutava por não ser engolido pelo sono -ouço muito de tudo e nada do que me disseres há de surpreender-me.
-Pois bem garoto, se queres ouvir. Vou contar-te. –e o homem se ajeitou como pôde na cadeira- eu sou Antônio Cruz, sou dono das fazendas lá do Centro-Oeste. Dinheiro não me falta, não sou um bêbado e só estou aqui, desse lado do país, porque tive que fugir de casa as pressas. Minha mulher, não suspeita por onde ando, e não o deve fazer. Eu sempre tive um pavio muito curto, e ela sempre fora belíssima. Joana é muito mais jovem mais que eu, é bela e formosa. Lá nas redondezas todos sempre a desejaram e, invejaram-me. Sejamos sinceros, meu físico não é lá dos mais bem vistos e tê-la ao meu lado sempre despertou inveja aos menos aventurados. Eu tinha tudo, uma bela casa, muito dinheiro, e uma mulher que me amava; só me faltavam filhos.
-Um segundo só. –interrompeu o garçom, que se esticou e serviu uma dose de cachaça a um homem de chapéu que acabara de se sentar ao lado de Antonio. –continue.
-Eu já passo dos 50, Joana não fora minha primeira esposa, e eu nunca tivera nenhum herdeiro. Já havia desistido da ideia, sabia que o problema devia ser minha saúde frágil, era eu quem não podia conceber filhos. Mas esse havia se tornado um mero detalhe em minha existência, já não me fazia falta, já não me trazia dor.
-Outro segundo. –pediu o garçom, que dessa vez serviu a cachaça ao homem de chapéu e o Conhaque de Gengibre a Antonio. –vá lá.
-Tudo ia bem. Às vezes, por trabalho, eu precisava me ausentar por algumas semanas, outras vezes, até por meses. Mas Joana sempre ficava em companhia de sua mãe, que vivia conosco, e quando eu voltava tudo estava em perfeita ordem e harmonia. Eu era recebido com mais carinho a cada viagem.
-Desculpe-me a interrupção. Mas até agora não me apontaste um só problema. Não encontro chave para essa cólera que te possui. –indignado, dizia o garçom.
-Oh rapaz, minha desgraça ainda não havia tido inicio. –resmungou ele em voz baixa, e depois reiniciou seu relato- Tudo começou em setembro. Havia pouco que acabara a colheita de milho no Mato grosso, e eu estava a retornar para casa com o coração despedaçado pela saudade. Eis que começou um temporal fora de hora em Goiânia. Eu voltava só e a cavalo, tive de pernoitar em um hotel pelas redondezas para no dia seguinte poder seguir viagem. Assim que o sol raiou eu segui, já me haviam meses longe do lar e eu mal aguentava a ansiedade. –Antonio começou a ralhar contra o vento.
-Homem, te agonias depois. Agora, continua a história. –o rapaz parecia inerte no relato que lhe era contado.
-Não me demorei a chegar em casa. Eu não havia avisado que retornaria, Joana acreditava que minha viagem fosse durar umas duas semanas a mais; mas, eu queria fazer-lhe uma surpresa. E fiz a ela, como ela a mim. –ele sugou o nariz que escorria- Quando entrei pela porta da sala, eu a vi: sentada na cadeira de balanço, de olhos fechados, nem deve ter notado minha presença. Continuava linda, seus cabelos claros deitados sobre os ombros como uma cachoeira a cair do rio; pele de porcelana, lábios vermelhos. Um anjo que repousava. Ate que notei o volume em seu abdômen... Ela sempre fora esbelta, longilínea, uma deusa; e agora tinha algo semelhante a uma melancia debaixo das roupas, uma melancia que ela fazia carinho. Ela acariciava a barriga, e vez ou outra um sorriso brotava-lhe nos lábios. Ate que ela abriu os olhos e num pulo se enroscou em meus braços.
-Espere, era um bebê ?! –o garçom assustou-se- E não era seu !
-Sim e não. Era um bebê, mas não era mesmo meu. Foi quando ouvi passos descendo a escada da sala. Virei-me e o amante dela estava ali. Parado no ultimo degrau e encarando-me, com todos os dentes a mostra. Ele devia ter quase a mesma idade que ela, ela devia ter se cansado de mim. Mas levá-lo para minha casa fora o fim, inaceitável. Logo me passou tudo pela cabeça e a decisão foi espontânea. Tirei o canivete que carregava no bolso esquerdo sem que ela notasse, e o cravei em seu ventre. Seu grito de dor quase ensurdeceu-me e ela caiu ao chão sangrando e praguejando-me entre pedidos de socorro. O homem veio correndo contra mim, devia querer proteger seu rebento. Brigamos como dois meninos, rolamos ao chão. Eu só lhe fiz um talho na cara com o canivete, mas ele rapidamente surgiu com um revolver de algum lugar e me atingiu o braço à queima roupa. Consegui ficar de pé e saí correndo enquanto ele disparava tentando acertar-me novamente. Corri milhas.
-Você a matou ?
-Não, só matei a prova de sua sem vergonhice. Refiz minha honra deixando claro que aquilo não ficaria barato, como não ficou.
-Esse você descobrisse que estava errado ? E que matou seu próprio filho ? –indagou o homem de chapéu sentado ao lado de Antonio, que há horas ouvia e não se pronunciava.
Antonio gargalhou ironicamente. –Não havia como o filho ser meu, eu não posso engravidar uma mulher. Ela me traíra e manchara sua reputação com o sangue do herdeiro do outro. Ela se mostrara uma mulher desprezível, vadia.
Nesse momento, o homem de chapéu ergueu o rosto e encarou Antonio nos olhos. Era ele o homem que estava lá, aos pés da escada enquanto Joana abraçava Antonio fingindo ser a esposa amável que sempre fora, era ele o homem que havia ganho o talho no rosto e deixado o tiro no braço de Antonio. O corte já estava bem melhor, mas a ferida ainda pulsava; talvez fosse o ódio em seu corpo.
-Desgraçado, o que faz aqui ? –Antonio pulou da cadeira.
-Joana morreu, e o bebê também. Vim buscar vingança. –Ele tirava um punhal do bolso enquanto falava.
-Você roubou minha mulher, me tirou a vida maravilhosa que eu tinha. Eu só fiz o mesmo com você. Ninguém deve nada a ninguém. –a bebida fez de Antonio um homem medroso desde o dia em que tudo acontecera. Ele ficara perturbado.
O homem gargalhou alto. –Eu roubei sua mulher ?!
-Sim, roubou minha mulher e minha vida. Ris agora de que ?
-Joana era minha irmã ! Eu sou Afonso, estava na Europa há anos. Ela havia lhe falado de mim, eu ate enviei-lhe um presente de casamento, uma bandeja de prata com o nome de vocês grafada atrás.
-Afonso Ri os ! –o torpor possuiu seu corpo nesse mesmo instante. –Então o bebê era de quem ?
-Era seu ! Minha irmã nunca se deitou com um homem que não fosse você. Eu vim da Europa justamente quando ela me enviou uma carta dizendo que havia ganho a chance de ser mãe de um filho seu e que eu precisava acompanhar esse momento divino. Ela se sentia abençoada. E você tirou isso dela, junto da vida.
Antonio voltou à cadeira onde estivera. O arrependimento tomou-lhe em abraço. E ele desatou em choro compulsivo. Queria voltar no tempo e corrigir tudo, mas já não era possível.
-Agora, eu pego o que vim buscar. –disse Afonso com o punhal em mãos, caminhando ate Antonio.
Antonio olhou uma ultima vez nos olhos do menino garçom, viu o pavor correndo lhe nas córneas. Em seguida virou-se para o lado de onde vinha Afonso, ate que sentiu a lamina fria rasgando-lhe a barriga como ele fizera com Joana. Talvez fosse a bebida, talvez fosse o arrependimento; mas ele queria morrer. Já não mais aguentava a dor de viver sem sua amada e agora o peso lhe era tomado dos ombros. Ele podia dormir para sempre, e dormiu.
Afonso Rios pagou a cachaça que consumira, retirou o punhal da barriga de Antonio e o guardou novamente no bolso. Deu as costas ao garçom, e foi-se embora. O menino vendo tudo aquilo, não fez nada alem de entrar bar adentro ate a maquina de escrever que ficava sobre a mesa do escritório do patrão, e descrever tudo o que havia visto. Era sua chance de se tornar um grande escritor. Haviam-lhe dado a faca e o queijo, faltava que ele soubesse como cortar para encher-lhe o estômago.

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