Bebeu a 3° dose de Conhaque de Gengibre, pois só possuía
dinheiro que comprava tal bebida. Escondeu a careta na manga da camisa de linho
branco enquanto sentia a garganta queimar e o fígado se desintegrar. Engoliu a lágrima que ansiava por liberdade, prendendo-a agora em um lugar mais profundo
de sua alma. Bateu o copo no balcão e pediu a 4° dose. O garçom encabulado com
tal resistência a porcarias sentiu pena do homem de cabelos desgrenhados e
olhos inchados, julgou ser mal de amor.
Naquele botequim, tudo seguia independente do que aquele
macho sofredor sentia. Não fazia diferença ao velho que se enroscava em sua
amante 20 anos mais nova e uma fortuna mais pobre; não fazia diferença à loura de
corpo esbelto que buscava seu cliente dessa noite; não fazia diferença à um
homem estranho e solitário que havia muito estava imóvel no canto; não fazia
diferença para ninguém.
À essa altura, o apreciador de bebidas ruins, já não se aguentava
de pé. E com a cabeça deitada sobre o balcão engordurado, e possivelmente,
infectado com a maior variedade de doenças possíveis; ele começou a puxar
assunto com o garçom.
- Ei! Rapaz, chegue aqui. –ele falou tentando não enrolar
tanto a língua.
O garoto com pouco mais de 18 anos, que começara a trabalhar
ali havia algumas semanas apenas, viu que o lugar já começava a desertar-se. Se
dirigiu ao bêbado:
-Que te aconteceste homem? Por quê dessa sangria desatada?
Não tens casa ou mulher a cuidar? –indagava o menino.
-Não menciones casa ou mulher, não quero lembrar-me que
possuo tais coisas. –dizia ele com a voz embargada, quando pela bebida, quando
não pela emoção.
-Ora homem, sua mulher deve estar a preocupar-se contigo.
Teus filhos devem estar a chamar-te.
-A mulher que eu tinha, não quero mais. Se houvesse como
devolvê-la, eu o faria. Se a quiseres pode buscar. –ele disse erguendo a mão
com um molho de chaves retirado do bolso.- talvez ela lhe tenha maior serventia
que a mim. Já meus filhos, não existem. Nunca consegui ser pai.
-Não quero sua mulher –o jovem garçom segurava o riso-
baseado em tua aparência, ela não deve ser lá muito bonita. E quanto aos
filhos, tu tens é a sorte de não tê-los. Veja, se os tivesse não estaria aqui a
beber, estaria a trabalhar para dar-lhes de comer.
O homem balbuciava palavras incompreensíveis, frases que não
se conectavam, orações que se perdiam em meio ao seu pranto.
-Beba mais está. –disse o garçom trazendo outra dose de Conhaque
de Gengibre ao bêbado.
-Não tenho mais um vintém. –lamentava o homem.
-Deixe essa por minha conta. –o rapaz fazia-se de gentil
para conhecer a história do homem. Estava acostumado a ouvir as maiores
barbaridades dos outros bêbados que ali se sentavam. Não se cansava nunca de
servir-lhes de ombro amigo, gostava de saber das desgraças dos outros para
depois escrever.
O menino, que estava a tornar-se homem vagarosamente, amava
escrever. Descrevia olhos pequenos como os seus, ou grandes como os de sua mãe.
Contava amores como o de Romeu e Julieta, mas, gostava mesmo era das loucuras
de Catherine e Heathcliff. Bebia do vinho que Jesus tomara na última ceia, mas,
em grande maioria apreciava mesmo era um bom e velho uísque como Bukowski.
Queria ser homem de fibra como o pai fora um dia.
-Conta-me o que te aflige homem. Quem sabe eu não te aponto
o norte? Não perdes nada por comigo falar. –ele buscava convencer o ser
alcoolizado que lutava por não ser engolido pelo sono -ouço muito de tudo e
nada do que me disseres há de surpreender-me.
-Pois bem garoto, se queres ouvir. Vou contar-te. –e o homem
se ajeitou como pôde na cadeira- eu sou Antônio Cruz, sou dono das fazendas lá
do Centro-Oeste. Dinheiro não me falta, não sou um bêbado e só estou aqui,
desse lado do país, porque tive que fugir de casa as pressas. Minha mulher, não
suspeita por onde ando, e não o deve fazer. Eu sempre tive um pavio muito
curto, e ela sempre fora belíssima. Joana é muito mais jovem mais que eu, é
bela e formosa. Lá nas redondezas todos sempre a desejaram e, invejaram-me.
Sejamos sinceros, meu físico não é lá dos mais bem vistos e tê-la ao meu lado
sempre despertou inveja aos menos aventurados. Eu tinha tudo, uma bela casa,
muito dinheiro, e uma mulher que me amava; só me faltavam filhos.
-Um segundo só. –interrompeu o garçom, que se esticou e
serviu uma dose de cachaça a um homem de chapéu que acabara de se sentar ao
lado de Antonio. –continue.
-Eu já passo dos 50, Joana não fora minha primeira esposa, e
eu nunca tivera nenhum herdeiro. Já havia desistido da ideia, sabia que o
problema devia ser minha saúde frágil, era eu quem não podia conceber filhos.
Mas esse havia se tornado um mero detalhe em minha existência, já não me fazia
falta, já não me trazia dor.
-Outro segundo. –pediu o garçom, que dessa vez serviu a
cachaça ao homem de chapéu e o Conhaque de Gengibre a Antonio. –vá lá.
-Tudo ia bem. Às vezes, por trabalho, eu precisava me
ausentar por algumas semanas, outras vezes, até por meses. Mas Joana sempre
ficava em companhia de sua mãe, que vivia conosco, e quando eu voltava tudo
estava em perfeita ordem e harmonia. Eu era recebido com mais carinho a cada
viagem.
-Desculpe-me a interrupção. Mas até agora não me apontaste
um só problema. Não encontro chave para essa cólera que te possui. –indignado,
dizia o garçom.
-Oh rapaz, minha desgraça ainda não havia tido inicio.
–resmungou ele em voz baixa, e depois reiniciou seu relato- Tudo começou em
setembro. Havia pouco que acabara a colheita de milho no Mato grosso, e eu
estava a retornar para casa com o coração despedaçado pela saudade. Eis que
começou um temporal fora de hora em Goiânia. Eu voltava só e a cavalo, tive de
pernoitar em um hotel pelas redondezas para no dia seguinte poder seguir
viagem. Assim que o sol raiou eu segui, já me haviam meses longe do lar e eu
mal aguentava a ansiedade. –Antonio começou a ralhar contra o vento.
-Homem, te agonias depois. Agora, continua a história. –o
rapaz parecia inerte no relato que lhe era contado.
-Não me demorei a chegar em casa. Eu não havia avisado que
retornaria, Joana acreditava que minha viagem fosse durar umas duas semanas a
mais; mas, eu queria fazer-lhe uma surpresa. E fiz a ela, como ela a mim. –ele
sugou o nariz que escorria- Quando entrei pela porta da sala, eu a vi: sentada
na cadeira de balanço, de olhos fechados, nem deve ter notado minha presença.
Continuava linda, seus cabelos claros deitados sobre os ombros como uma
cachoeira a cair do rio; pele de porcelana, lábios vermelhos. Um anjo que
repousava. Ate que notei o volume em seu abdômen... Ela sempre fora esbelta, longilínea,
uma deusa; e agora tinha algo semelhante a uma melancia debaixo das roupas, uma
melancia que ela fazia carinho. Ela acariciava a barriga, e vez ou outra um
sorriso brotava-lhe nos lábios. Ate que ela abriu os olhos e num pulo se
enroscou em meus braços.
-Espere, era um bebê ?! –o garçom assustou-se- E não era seu
!
-Sim e não. Era um bebê, mas não era mesmo meu. Foi quando
ouvi passos descendo a escada da sala. Virei-me e o amante dela estava ali.
Parado no ultimo degrau e encarando-me, com todos os dentes a mostra. Ele devia
ter quase a mesma idade que ela, ela devia ter se cansado de mim. Mas levá-lo
para minha casa fora o fim, inaceitável. Logo me passou tudo pela cabeça e a
decisão foi espontânea. Tirei o canivete que carregava no bolso esquerdo sem
que ela notasse, e o cravei em seu ventre. Seu grito de dor quase ensurdeceu-me
e ela caiu ao chão sangrando e praguejando-me entre pedidos de socorro. O homem
veio correndo contra mim, devia querer proteger seu rebento. Brigamos como dois
meninos, rolamos ao chão. Eu só lhe fiz um talho na cara com o canivete, mas
ele rapidamente surgiu com um revolver de algum lugar e me atingiu o braço à
queima roupa. Consegui ficar de pé e saí correndo enquanto ele disparava
tentando acertar-me novamente. Corri milhas.
-Você a matou ?
-Não, só matei a prova de sua sem vergonhice. Refiz minha
honra deixando claro que aquilo não ficaria barato, como não ficou.
-Esse você descobrisse que estava errado ? E que matou seu
próprio filho ? –indagou o homem de chapéu sentado ao lado de Antonio, que há
horas ouvia e não se pronunciava.
Antonio gargalhou ironicamente. –Não havia como o filho ser
meu, eu não posso engravidar uma mulher. Ela me traíra e manchara sua reputação
com o sangue do herdeiro do outro. Ela se mostrara uma mulher desprezível,
vadia.
Nesse momento, o homem de chapéu ergueu o rosto e encarou
Antonio nos olhos. Era ele o homem que estava lá, aos pés da escada enquanto
Joana abraçava Antonio fingindo ser a esposa amável que sempre fora, era ele o
homem que havia ganho o talho no rosto e deixado o tiro no braço de Antonio. O
corte já estava bem melhor, mas a ferida ainda pulsava; talvez fosse o ódio em
seu corpo.
-Desgraçado, o que faz aqui ? –Antonio pulou da cadeira.
-Joana morreu, e o bebê também. Vim buscar vingança. –Ele
tirava um punhal do bolso enquanto falava.
-Você roubou minha mulher, me tirou a vida maravilhosa que
eu tinha. Eu só fiz o mesmo com você. Ninguém deve nada a ninguém. –a bebida
fez de Antonio um homem medroso desde o dia em que tudo acontecera. Ele ficara
perturbado.
O homem gargalhou alto. –Eu roubei sua mulher ?!
-Sim, roubou minha mulher e minha vida. Ris agora de que ?
-Joana era minha irmã ! Eu sou Afonso, estava na Europa há
anos. Ela havia lhe falado de mim, eu ate enviei-lhe um presente de casamento,
uma bandeja de prata com o nome de vocês grafada atrás.
-Afonso Ri os ! –o torpor possuiu seu corpo nesse mesmo
instante. –Então o bebê era de quem ?
-Era seu ! Minha irmã nunca se deitou com um homem que não
fosse você. Eu vim da Europa justamente quando ela me enviou uma carta dizendo
que havia ganho a chance de ser mãe de um filho seu e que eu precisava
acompanhar esse momento divino. Ela se sentia abençoada. E você tirou isso
dela, junto da vida.
Antonio voltou à cadeira onde estivera. O arrependimento
tomou-lhe em abraço. E ele desatou em choro compulsivo. Queria voltar no tempo
e corrigir tudo, mas já não era possível.
-Agora, eu pego o que vim buscar. –disse Afonso com o punhal
em mãos, caminhando ate Antonio.
Antonio olhou uma ultima vez nos olhos do menino garçom, viu
o pavor correndo lhe nas córneas. Em seguida virou-se para o lado de onde vinha
Afonso, ate que sentiu a lamina fria rasgando-lhe a barriga como ele fizera com
Joana. Talvez fosse a bebida, talvez fosse o arrependimento; mas ele queria
morrer. Já não mais aguentava a dor de viver sem sua amada e agora o peso lhe
era tomado dos ombros. Ele podia dormir para sempre, e dormiu.
Afonso Rios pagou a cachaça que consumira, retirou o punhal
da barriga de Antonio e o guardou novamente no bolso. Deu as costas ao garçom,
e foi-se embora. O menino vendo tudo aquilo, não fez nada alem de entrar bar
adentro ate a maquina de escrever que ficava sobre a mesa do escritório do
patrão, e descrever tudo o que havia visto. Era sua chance de se tornar um
grande escritor. Haviam-lhe dado a faca e o queijo, faltava que ele soubesse
como cortar para encher-lhe o estômago.
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