19 de abr. de 2014

Garota Da Chuva

O chão molhado pela chuva respingava lama para todos os lados quando ela batia suas galochas laranjadas contra o concreto. Abaixo do guarda chuva a menina carregava um sorriso colorido demais para um dia cinza como aquele. Todos se espantavam com tamanha gentileza em seu olhar, andar, falar e tudo que terminar com "ar".
Naquela semana, a bolsa de Nova Iork havia caído; a Amazônia tinha um quilômetro a menos; mais um furacão havia passado pelo Japão; e a essa altura, mais uma bomba acabava de explodir em algum lugar do ocidente; mas quase nada, pra não dizer que nada, disso afetava o jeito inocente dela de ser. O tempo úmido não frisava seu cabelo ondulado e caramelo como um pacote de balas, e sua pele, aveludada como a de um anjo, parecia não possuir poros. A natureza havia beijado-lhe a face e presenteado-te com o melhor dos tesouros, a juventude.
Por isso havia quem a invejasse. As moças que já tinham idade para usar sutiã, tinham raiva da mocinha de belos traços e caminhar elegante para sua idade. O bom gosto morava no pequeno corpinho que um dia se parecerá com um violão, e isso as irritava, pois, por mais que quisessem conservar aquela beleza menina de ser, elas não conseguiam e a viam esvair-se delas cada dia mais. Ninguém sabia de onde ela vinha ou sequer pra onde ia. Nos dias de sol, não aparece; mas, sempre que chove, ou que o tempo tempesteia, ela dá o ar da graça. Há quem diga que ela é a encarnação do sol que quando cansa de assistir tudo lá de cima, desce aqui, na Terra, pra passear.
Nesse sábado, ela mudou a cor da capa de chuva, escolheu o azul, como o céu. As galochas ainda são as mesmas, mas o guarda chuva parece ter ganhado bolinhas brancas ou vermelhas, não importa. Ela deu boa tarde ao padeiro que na porta espera os pães que estão na cozinha crescendo;sorriu para senhora de dentes amarelos que trancava a floricultura; cumprimentou com um sorriso a filhinha dos donos da loja de animais e seguiu, depressa, rua afora.
A rua era daquelas longas e bem longas mesmo, do tipo que o garoto da banca de jornais de uma esquina talvez nunca veja a garota da loja de calcinhas da outra esquina, e assim, se o destino não preparar uma boa para os dois, é provável que eles nunca se conheçam. Era por isso, eu acho, que ninguém sabia que a alegria que ela trazia, nem ela tinha. Pois se eles não conhecem a garota da capa de chuva estranha, eu conheço e por ela choro. Não choro de dó, choro porque um dia, todo seu agasalho fora laranjado como peônias mas, a cada dia de caminhada na chuva, ela doa um pouquinho do seu colorido para colorir o mundo de quem a vê e isso a tem tornado menos vibrante vagarosamente.
No início, ela era mesmo como o sol. Brilhante, radiante, forte. Quando veio de casa, quando veio além da margem gravitacional -se isso existir. Agora, sempre que ela vem visitar seus velhos conhecidos é sagrado deixar cor. E ela vai, caminhando como se seus pés fossem lápis de cor ou gizes de cera que fazem de cada passo um risco de vida no preto e branco monótono e triste. Vai sem medo, sem preocupar-se em combinar as cores, sem medo de sair fora do contornado do desenho, segura de que é isso que ela tem de fazer. Segura de que as cores que ela aqui deixa, também a farão sentir-se bem; que seja se recolorindo um dia, que seja admirando tudo quando terminar; sua única certeza é de que está fazendo o certo. Sem dores, sem traumas. Só vida.
Ela acabou de passar por aqui, sei disso porque as lágrimas que derramo por ela estar perdendo cor, acabaram de se tornar violeta. Me sinto culpada por eu também estar roubando sua vida, me sinto culpada por viver e ajudar com que um dia ela se torne só um traçado sem preenchimento. Me sinto culpada mas, hoje mais do que nunca, me sinto viva. Me sinto viva como se um arco íris vivesse em mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário