12 de jul. de 2018

Linha E Linho

Acordei naquela manhã mais cedo que o normal, o sol nem tinha nascido ainda. Fiz um café forte e livre de açúcar para sarar o álcool de ontem e o tomei. Parti para um banho em água fria, sentindo a dor de cada músculo se enrijecendo; me ensaboei; enxagüei; lavei os cabelos e vi gotas de dor descendo pelo ralo. Sai do banheiro de azulejos manchados e no quarto mofado vesti o único vestido de linho empoeirado que ainda me resta, notando que um dia ele fora branco.
Pela casa, parecia ter passado um terremoto. Eram poças de lágrimas pelos cantos; corpos lambuzados com seus próprios fluidos; almas vagando entre a fumaça dos tocos de cigarro espalhados pelo carpete; era desolação para mim.
Cada face encontrada no espelho, me cortava como uma faca de serra. Eu já me sentia morta. Por que trazer vida a um lugar que transpira solidão ? Por que buscar salvação a quem já assinou seu encaminhamento para o purgatório ?
Minha audição era boa e até as paredes gritavam por socorro, era demais pra guardarem em si mesmas. Eu não sabia mais o que fazer ali. Sabe quando o vazio parece ser mais doloroso que algo de ruim te preenchendo ? Eu me sentia assim.
A solidão não me buscava nas noites em que a confusão ocupava os buracos no piso daquela casa, ou ocupava os furos feitos na parede para pendurar quadros que algum dia enfeitaram a vista... A solidão me buscava quando o escuro da noite tapava minhas retinas e o som da rua se calava.
Como uma cratera que sempre aumenta, o buraco em mim crescia. E eu juro, de dedo mindinho e tudo, nada me salvava. Nem coisas nocivas e nem as coisas boas. Eu era como um ser morto em vida.
Eu vagava pelo mundo como o ar, sem direção ou intensidade certas. Qualquer peito era um bom travesseiro, até o dia em que eu acordava com medo e precisava retornar para casa. Notando sempre que o portal da sala era mais forte do que eu podia pensar, porque ele me limpava de tudo e me fazia imunda de novo. Como um assassino que socorre a vítima para depois machuca-la outra vez. As paredes de casa não me faziam mais humana do que a rua. Talvez o problema fosse eu.
E eu tentei; a terapia, o trabalho voluntário, a faculdade, a casa dos pais, as drogas, o sexo, o isolamento e também a morte; mas nada me ajudou.
Eu só não tentei o que talvez fosse ajudar de verdade; eu não tentei amor próprio um dia sequer. Eu não me amei e nem amei meu corpo por uma fração de segundo num dia tranquilo. Eu não quis escutar os meus próprios gemidos de nojo cada vez em que eu buscava uma nova forma de preenchimento. Eu não escutei nada.
E eu só pude notar isso, no dia em que a minha tentativa de morte enfim deu certo.
Com o mesmo vestido de linho branco, agora limpo e como novo, eu abri os olhos e não senti nada. De pé ao meu lado eu me observei.
Agora eu era como uma folha em branco. Antes ainda havia a indiferença, nesse momento, nem isso. Não haviam sensações.
Eu simplesmente não sentia mais o maxilar doer quando as lágrimas não encontravam vazão. O ar corria tranquilamente em minhas vias aéreas. O coração em ritmo lento, como o de quem se senta para assistir a polinização de flores.
Até que eles começaram a chegar.
Eu ouvia as pessoas sorrindo e chorando em outros cômodos enquanto meu corpo já estava em estado de putrefação e eu não podia fazer nada. Eu vi tanta coisa. 
Eu vi a Vida entrar pela porta, com raiva nos nos olhos, tendo em mãos uma tesoura enferrujada, e sentada ao meu lado cortar nosso elo. Eu vi o Amor chegar, se debruçar sobre mim no chão e chorar sobre o meu cadáver. Eu vi a Felicidade dizendo em deboche, que eu nunca havia liberado sua entrada em minha vida. Eu vi o Ódio, chegar e me olhar com desdém, como um pai decepcionado.
E eu vi a morte. Eu a vi aparecer em súbito com um grande saco nas costas, se ajoelhar no chão e recolher meus cabelos próximos ao meu corpo. Ela ajeitou meus pés, limpou a secreção seca dos lábios, e me beijou a testa antes de me separar em duas partes.
Com minha cabeça em suas mãos e o corpo nas costas, ela andava enquanto eu a seguia.  Durante dias eu a segui. Até descobrir qual era o ponto de chegada.
E adivinhe ? Em uma casebre com falhas no telhado e paredes de madeira roídas, ela entrou e eu também. Sua forma escura e seus ombros curvados não fizeram sombra ao passarem em frente à uma janela onde o sol descansava, e então eu percebi que o interior era mais que um simples casebre, era tudo uma grande fábrica. A Morte então passou ao lado de uma grande lixeira e arremessou meu corpo ao encontro de outros restos. Com alguns passos , e ao fim de uma longa esteira, ela parou , embaixo de uma placa imensa e brilhante que dizia “novas embalagens”. Pediu ajuda para uma forma desforme , e retirou da esteira uma caixa que pôs em uma mesa próxima. Escreveu algumas coisas em um cartão que colou na caixa, pousou sobre a mesa a caneta velha, e deu de costas rumando a porta.
Não havia mais nada que ver, então retornei para o meu ninho. 
Com os pés sem calos e as articulações sem dor nenhuma eu cheguei. E por mais absurdo que pareça, ainda endereçavam coisas aos mortos, porque havia uma entrega endereçada a falecida. Eu então percebi que havia um cartão, de papel áspero e letras quase ilegíveis que me fizeram forçar a visão, li os seguintes os dizeres:
“ Sinto muito querida, as coisas não são fáceis. Mas realmente não é para que sejam. Espero que dessa vez não consiga como nas últimas e , na verdade, sequer tente. Esse é seu último exemplar, não conseguirei que a Vida lhe dê mais nenhum , portanto, use-o direito, daqui em diante eu já não posso mais fazer nada por você. Permita que os outros também se acheguem, infelizmente, eu não posso estar junto a ti. Compreenda que sua vontade de morrer , é uma ilusão que seu subconsciente desenvolveu baseado em mim, e morrer não vai me aproximar de ti novamente. Eu sou o fim agora, eu não sou mais a sua companhia, eu não sou mais o homem que eu costumava ser. E você tem mais a conhecer. Por favor, não faça mais ninguém chegar ao seu corpo inerte. Convide-os para estar contigo enquanto seu coração ainda pulsa. A Felicidade, a Vida, o Amor , principalmente ele, e o Ódio, tem bastante a te oferecer ainda. Sigo os e aprenda com eles. Não deixe mais que a Solidão te machuque. Eu te juro, no fim, quando for a hora de verdade, eu mesmo recolherei seu corpo e te olharei nos olhos. Como nos velhos tempos. Dedique a si mesma , tudo o que você tem guardado para mim. Você merece muito. 
E ela partiu.
Como que se um segundo pudesse durar horas, eu chorei. Enquanto o vento secava as lágrimas que desciam , a Vida chegou. E com linha e agulha nos ligava novamente enquanto dizia: 
- Algumas pessoas desse lado, foram pessoas que você conheceu. Compreenda que não são mais. Você já teve mais demonstrações de amor que qualquer outro falecido que eu conheci. Não seja tão egoísta, voce é a única que consegue lidar com a morte com tanta facilidade. Não os obrigue mais a vê-lá daquele jeito antes do necessário. Fique com esse corpo até o dia planejado. Partir não é uma decisão que você pode tomar.
Então a Vida, deu de ombros e se foi. Deixando a porta aberta e a brisa entrar, num suspiro eu era carne novamente, e quando a Luz passou por mim, eu vi o quanto abaixo do sol a Vida reluzia. A vida era linda !

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